quarta-feira, 25 de março de 2020

Corônicas - Seu Silva e a quarentena.


Ele enlouqueceu. Foi esta a conclusão que a família do Seu Silva chegou.

Passaram dias pedindo a seu Silva que ficasse em casa, devido as circunstâncias, mas seu Silva se disse atleta. E sabe como é, um atleta tem no máximo uma gripezinha, um resfriadinho...

E não se sabe muito bem o motivo, mas naquela manhã de quarta-feira Seu Silva estava especialmente enlouquecido.

Colocou sua bermuda de domingo, a blusa do seu time do coração, e saiu com o carrinho de rolimã de seu neto.

- Pai, onde você vai?

- Viver a vida. Me deixa.
- O senhor consegue viver a vida aqui dentro de casa, por favor?

- Isso não é vida, Laura. Pelo amor de Deus, sabe. Eu já tenho 69 anos, sabe. Você não manda em mim. 

Saiu, bateu a porta, sem tempo de qualquer resposta da filha. Minutos depois, o telefone da casa toca. 

- Oi, Laura. É a Jurema. Tudo bom? Seu pai saiu de casa?

- Saiu. Nem sei o que dizer, pegou o carrinho de rolimã do Ian, e disse que iria viver a vida.

- Então, seu pai está descendo a rua aqui de casa sem parar de rolimã cantando alto e incomodando os vizinhos
.
- Desculpe, Jurema. Não sei o que fazer com ele. Já liguei para a psicóloga, falei com a professora de hidroginástica também. Ele adora a aula de hidroginástica, mas ela disse que ele estava faltando, o que eu achei um absurdo porque ele sai de casa sempre dizendo que está indo para aula.  

- Ai, Laura. Aqui também não está sendo fácil. Papai apareceu com uma tatuagem mês passado. Vira e mexe sinto um cheiro estranho do quarto dele. Acho que está até se envolvendo com maconha...

- Sério, Jurema? O que vamos fazer com nossos idosinhos, heim?

Durante a conversa das vizinhas Seu Silva chega em casa e grita logo da entrada.

- LAURA, PARA DE FOFOCAR NESTE TELEFONE! E só quero avisar que a Isolda vai vir aqui mais tarde, e não quero deselegância da sua parte. Ela é minha namorada e vai vir me ver quando quiser. E vai dormir no meu quarto, sim. Todo mundo que eu conheço está aproveitando a quarentena!

Laura desligou o telefone, correu até o Seu Silva, e fez o que deveria ter feito antes do surto do rolimã.

- Chega! Vai tomar banho, e vai pro seu quarto! VOCÊ NÃO É TODO MUNDO.

E foi assim que seu Silva entrou em quarentena.

terça-feira, 24 de março de 2020

Corônicas - Enzo, seu arrombado.

A mãe grita diretamente da cozinha, enquanto o pai resolve cortar as unhas dos pés no meio da sala.

- Eu ouvi a porta bater? EU OUVI A PORTA BATER? Quem é o filho da puta que está saindo de casa?

O silêncio permaneceu.

- Ernesto, seu merda! Além de cortar este casco, você consegue me passar informação de quem saiu de casa? Eu estou fazendo comida.

- Ninguém saiu, Norma. Ninguém saiu.

O pai não havia percebido que o filho havia passado pela porta de tão entertido que estava com o artesanato de suas unhas.

Mãe não dorme no ponto. Da janela da cozinha observou Enzo saindo do prédio indo em direção à portaria.

- SEU FILHO DUMA PUTAAAAAAAAAAAAAAAAAA! DÁ PRA SUBIR AGORA??? NINGUÉM SAI DESTA PORRA DE CASA, ESTÁ ME OUVINDO?????

Enzo grita da portaria fazendo com que todos vizinhos corram para a janela do condomínio.

- AQUI É RESISTÊNCIA, MÃE. NÃO PEGA NADA!

Dona Norma não deixa barato, e com o amor de mãe que lhe é nato grita de volta.

- ENZO, SEU ARROMBADO. EU QUERO QUE VOCÊ SE FODA. ESTOU PREOCUPADA COMIGO.

Agora os vizinhos se tocam que Enzo pode ser um transmissor potencial para todos os velhinhos do prédio e começam a interferir na briga.

Dona Julia do 72, uma senhora doce e meiga que costuma tomar sol no jardim do prédio tira forças de seus pulmõezinhos idosos e "grita":

- MENINO, SE EU PEGAR ESTA MERDA MEU NETO TE MATA, TÁ OUVINDO?

O Roberto do 92 também dá sua contribuição:

- VOLTA PRA CASA, SEU ARROMBADO!

E de repente numa comunhão nunca vista no condomínio Miraflores, todos vão às suas janelas com panelas, apitos, e em uníssono começam:

- NÃO SEJA INDELICADO, VOLTA PRA CASA SEU ARROMBADO!

Dona Norma vendo aquela comoção, gritou pra Ernesto que continuava fazendo suas unhas.

- Estão xingando nosso filho, Ernesto? Faz alguma coisa.

- Norma, ele já é adulto. Ele que se defenda.

Norma abandona o avental, e desce as escadas correndo. Ela não é doida de pegar o elevador.
Pega Enzo pelas orelhas, como se o adolescente de 15 anos tivesse 5 anos de idade novamente, levanta a cabeça para o condomínio, que continua gritando, e diz:

- O ARROMBADO É MEU, E SÓ EU POSSO CHAMAR ASSIM.

Norma joga Enzo dentro de casa. E diz:

- Passou a vida trancado nesta porra de quarto batendo punheta, agora quer sair? Deixa de ser do contra, seu arrombado. Entra neste quarto e não me enche o saco.

E assim começou a quarenta de Enzo.

Just me myself and I

Dia 19/03 eu tive uma crise de pânico. Um misto de falta de ar com sensação de morte que vão revezando entre eles até você surtar.

Eu tinha programado férias. No  momento em que eu escrevo eu deveria estar no Deserto do Atacama tomando cerveja com amigos e celebrando minhas férias.

Agora estou em casa, trancada, e vendo o mundo colapsar, e tentando não surtar. 

Lá no já remoto ano de 2001 eu desenvolvi uma crise de pânico. A sensação de que a vida está passando e eu ainda não havia ganho meu Nobel da Paz, sabe? 

Estava ficando velha, e não tinha realizado "nada". Dá um tom de desesperança, a impotência, e sem forças para continuar lutando. O ar falta. É um pico de ansiedade tamanho que a gente esquece do básico, respirar.

No dia seguinte fiz um zoom com alguns amigos, falamos um monte de besteiras, bebemos e demos muita risada. 
Quando desliguei aquele zoom, eu já estava com corona. Não, amigos, não estou com corona (ainda). Mas eu tinha todos os sintomas, principalmente a falta de ar. 

Eu moro sozinha, e comecei a pensar que se eu ficasse sem ar a ponto de falhar, eu morreria estatelada no chão, e com todos focados no corona, só lembrariam do meu corpo em meses, aí eu já estaria putrefada. E esses pensamentos não ajudavam. Foi aí que eu fui ao espelho, me olhei bem nos olhos e tive uma conversa bem séria comigo:

- SUA FILHA DA PUTA, PARA COM ISSO! VOCÊ JÁ SABE O QUE É. VOCÊ ESTÁ EM CRISE. TOMA UMA PORRA DE UMA ÁGUA E RESPIRA, RESPIRA, RESPIRA....

Fui acalmando. Liguei um mantra, acendi um incenso, e respirei.

Não, não faço yoga. Não, não medito com frequência, não faço relaxamento, não faço cazzo algum.
Mas minha cabeça sabe que isso é sinônimo de paz. E funcionou.

Acalmei. 

Sabe, não é fácil pra ninguém. Pra ninguém mesmo. E eu sei que não existe comparação. Cada um vai passar por este momento a seu modo. 

Dicas? Tem zilhões na internet. Só pesquisar. 

Mas ninguém, ninguém, NINGUÉM, ouviu? Te conhece melhor que você mesmo. Converse com você. Você vai saber o melhor caminho a tomar. 

Sério. Converse com você. Uma hora você vai descobrir que você é uma PUTA COMPANHIA FODA PRA CARALHO.

Boa quarentena, e eu vou voltar a escrever ;-)