terça-feira, 28 de outubro de 2008

O ilustre senhor Siso

Eu odeio ir ao dentista. E odeio mais ainda dentistas que querem conversar com o paciente durante o tratamento. O que eles esperam ouvir?

- Hgrgksaiemo...aham.

É humanamento impossível conversar naquela situação.
Mas há dentistas que têm toda uma técnica desenvolvida para conversar com os pacientes.
Eles enfiam a mão na sua boca e falam tudo que precisam falar. Depois disso, tiram a mão da sua boca, e esperam você responder. Se você falar muito, ele começa a colocar algodão na sua boca. E foi neste clima que eu descobri o nascimento.

- Seu dente do siso está nascendo! (reparei agora que nunca havia escrito esta palavra. Tive que olhar no dicionário)

- Jura? Que coisa.

Não sabia o que dizer. Talvez devesse fazer uma festa de boas vindas ao meu dente.

- Nossa, você demorou para tê-los, não? Normalmente nascem entre 16 e 20 anos... Se bem que por incrível que pareça, você ainda tem dois dentes de leite. Não os perca, viu?

- Vou tentar. Se eu perceber que eles estão fugindo, os agarrarei com a língua.

Não tive coragem de responder isso, mas deu vontade. Depois da célebre frase do dentista, chego a conclusão que se eu perder os tais dentes, talvez eu possa colocá-los debaixo do travesseiro, e tirar uma grana com a fada do dente. Estou precisando.

Meu sonho acabou quando ele completou a frase:

- Se perdê-los, vai ficar baguela. Os permanentes não nascem mais.

Ele ficou mexendo na minha boca, e dizendo que teria que extrair o siso, e o do outro lado provavelmente não nasceria e blá, blá, blá.

Enquanto ele contava a história do siso na humanidade, me veio a célebre frase das tias: "O dente do juízo esta nascendo!".
Eu estou com quase 30 anos. Ou seja, só agora terei juízo???
Agora tudo se explica. As bebedeiras, as danças bizarras, as festas estranhas com gente mais estranha ainda. Faltava o tal siso. Agora tudo vai ser diferente.

Semana que vem vou entar em algum financiamento da Caixa, comprarei uma casa, depois vou fazer um seguro, irei ao médico dar uma revisada na saúde, farei exercícios físicos, casarei, terei um filho (só um), agora que tenho juízo não seria louca de ter mais que isso.
Ah, juízo...Você não fez falta nenhuma.

domingo, 26 de outubro de 2008

João Gilberto

Desceu a estreita rua sem olhar para trás.

Não tinha mesmo o que olhar. O passado não interessava mais. Serviu para aprender as tais lições da vida, e só.

Sentia um vento de chuva em seu rosto. O cabelo foi jogado no rosto. Nem tentou arrumar. O que era um cabelo bagunçado perto da confusão que estava sua vida? Ele era o retrato fiel da desorganização que estava sua cabeça.

Não sabia para onde deveria ir. Começou a andar mais devagar para poder pensar em algo.

Talvez devesse avisar a polícia. Mas dizer o quê?
Talvez devesse voltar e arrumar as coisas, ou ao menos vesti-lo.
Achou melhor deixar os mortos para lá.

Fechava os olhos e conseguia lembrar de todos os detalhes.
O cheiro de sexo, cigarro e vinho barato.
Eles estavam no sofá laranja. O sofá que ela havia comprado em uma feira de móveis e parcelou em 10 vezes. Agora ele estava manchado de sangue. Nem tinha terminado de pagar as prestações.

A porta estava entreaberta. No som rolava um João Gilberto. Que tipo de pessoa transa ouvindo João Gilberto?

Se João Gilberto soubesse o tipo de gente que anda transando com sua música de fundo, nunca mais tocaria. O que não seria de todo ruim.

Ela sempre soube que ele tinha um caso. Era notório. Aliás, ela não era a única que sabia.
Sempre achou que ele, ao menos, respeitaria a sua casa. Mas não foi o que aconteceu.
Naquela terça-feira, final de tarde, ao chegar mais cedo do trabalho, dá de cara com aquela cena bizarra.

Ele estava com uma sunga de couro e um capuz preto no rosto. Os braços amarrados. Apanhava bastante com um chicote de couro.

Não dava para acreditar na cena.

Aquele olhar ela nunca vai esquecer. Ele sem palavras, com os olhos cheios lacrimejando. Pediu para que seu companheiro fosse embora.

Eles brigaram. E ela ouviu o primeiro tiro. Depois o segundo tiro mais abafado dentro da boca.

Os dois corpos nus jogados no sofá laranja.

Desligou o som, e saiu. Desceu a ladeira. Quando a ladeira acabou, ela sentou no chão, acendeu um cigarro e disse:

- Porra, João Gilberto.