sábado, 8 de setembro de 2012

37230 dias

Meu avô tem 102 anos. Isso mesmo, 102 anos de muita vida. Trabalhador da roça, sol a sol diariamente. Imagine que ele viveu aproximadamente 37230 dias. Eu com meus 11315 sou formiguinha perto da sabedoria dos 37230 dias.

Quando eu era criança costumava passar minhas férias com ele. Ele tinha um depósito de castanha. Quando eu enchia muito o saco dele, ele me mandava contar castanhas. Elas ficavam num canto do depósito. E lá ia eu contar as castanhas. Quando chegava aproximadamente na centésima, eu já estava contando com muita má vontade. Saia batendo o pé e dizendo que trabalho infantil era crime. Ele ria.

Chegou o dia da revanche. Quando ele me mandou contar castanhas, eu disse que não sabia ir muito além do número cem, e que ele precisaria me ajudar a contar. Meu avô pensou, coçou a cabeça, deu aquele risinho sábio e disse "Eu preciso do número para passar ao comprador. Como ele vai comprar sem saber quantas têm?". Sentamos os dois em frente à montanha de castanhas:

- Sabe, vô. Eu não sei como o senhor aguenta este trabalho. Queria muito saber o que o senhor faz sem mim para contar todas essas castanhas. Eu só venho aqui nas férias. Acho que é por isso que o senhor anda cansado. É muita castanha para contar.

Naquele momento meu avô sentiu que era a hora de me mostrar a vida. Foi ao fundo do depósito, pegou a balança grande e pesada. E começou a encher os sacos de castanha.  Colocou sobre a balança e disse:

- Quando você não vem, eu uso isso aqui, tá vendo? O saco tem 20 quilos de castanha.

A minha boca abriu em formato de "o", era assim que eu fazia quando algo me impressionava.

- Mas e se o freguês não confiar na balança, vô. Se ele quiser saber quantas têm?

- Ele que leve e conte em casa. Se tiver faltando alguma, pode vir buscar.

E saiu pela portinha do depósito arrastando suas sandálias de couro. É assim que é meu avô, desvenda os mistérios do universo, e sai. Sai sempre enigmático, como quem disse algo que não podia dizer. Como se guardasse todos os segredos do universo, e só contasse pra mim.

Resiliência

Para o amor é preciso resiliência. Quando ouço ou leio a palavra resiliência, só consigo associá-la ao amor. Dizem por aí que é um conceito emprestado da física. A física que me desculpe, mas esta palavra não era para pertencer à ela. O amor tem por sobrenome resiliência.

Ninguém pode se dizer incapaz de amar, ou de ser amado. O amor é inerente. Independe de vontade, independe de esforço está ali, resiliente. Ele adapta-se, mesmo em terrenos desfavoráveis. Mesmo não sendo bem-vindo, instala-se e permanece intransigente, resiliente. Não aceita sair, mesmo que lhe seja dito os piores desaforos do universo.

Lembro do dia em que conheci o amor. A primeira vez que ele me olhou, eu não o conhecia. Nunca fomos apresentados formalmente, ele dispensa rituais. Abri os olhos e lá estava ele, nos olhos castanhos da minha mãe. E disse que dali não sairia nunca mais. E dos olhos castanhos, parou em mim. Habitou em mim. 

Às vezes o colocava de castigo, no cantinho para pensar. Mas ele nunca se importou. Porque ele nunca pensou. Esta é uma das características fortes dele, irracional. E quando menos se esperava, ele estava em todos os lugares.

Acredita que o encontrei dentro da minha lancheira da escola? Em formato de pão com mortadela. Empesteou o pátio do colégio. Alguns olharam estranho, uns até com cara feia. Mas ele nem se importou, me fez feliz mesmo assim. 
Uma vez ele se disfarçou de vitrola. Era meu aniversário de 15 anos. Dentro de uma caixa gigante esta ele, com laço de fita e tudo. E foi sob o disfarce de vitrola que ele nos alimentou a noite toda, dançando, cantando, rodopiando pela sala ao som de vinis. 

Muitas vezes eu quis desistir dele, mas ele nunca desistiu de mim. E já na vida adulta ele apareceu em forma de homem. Este homem não tinha rosto, eram letras escritas que formavam as mais doces palavras. E antes do homem em si, o amor veio em palavras, e depois veio em carne, e o homem um dia foi embora, mas ele permaneceu dentro de mim. 

E cada dia que passa, desde daquele 16 de junho de 1981 em que ele estava nos olhos da minha mãe, nunca mais me abandonou. Ele se disfarça de coisas inesperadas. Nem sempre vem em forma de gente. Mas sempre está ali, quer eu queira, ou não. Sempre me acompanhando. Pode ser nos momentos felizes, nos tristes. nos momentos de desespero, sempre comigo.

Olha amor, eu aprendi a gostar de você. 

Fiódor Dostoievski

Tenho uma dívida com a humanidade. Nunca li Dostoievski. Sim, isso é uma humilhação. Hoje, quem nunca leu, não é ninguém. Sendo assim, não sou ninguém.
Sempre que vou à livraria, pego "Crime Castigo" na mão, e me dá uma preguiça, uma preguiça descomunal. Uma preguiça além da vida.

O que acontece é que estou cansada de ler literatura moderna recorrendo ao Seu "Dostô" (sim, já estamos íntimos). Raskólhnikov sempre é citado. Nos dois últimos livros que li, tinha este diacho de homi. Um sentimento de Raskólhnikov é a expressão usada. Como posso entender a profundidade do personagem se nem sei quem porra é Raskólhnikov?

Ontem eu estava andando pela Augusta e parei nessas banquinhas que vendem filmes cabeça. Aliás, esta expressão é a pior de todas, "filme cabeça". Vou mudar para "filmes que as pessoas têm uma desgraçada preguiça de assistir porque requer muita atenção, e tem atores desconhecidos do grande público", ficou melhor. Voltando. Estava eu na banquinha quando dou de fuça com "Crime Castigo". Olho, bocejo, olho. Penso, "Vai, Viviane. Você pode dizer a todos que leu o livro. Veja este filme e acabe com o segredo de Raskólhnikov". Porra, isso seria burlar o regulamento dos livros clássicos. Clássicos são para ser lidos. "Você não pode burlar este regulamento, Viviane. Você leu Pirandello, lembra". Minha consciência é foda, detona toda e qualquer chance de burlar o regulamento dos clássicos.

Com muita dificuldade larguei o DVD. Foi neste instante que uma pessoa pegou o DVD, e resolveu levar. Não resisti e fiz a pergunta: "Você leu?". "Sim, agora quero ver o filme". Bom rapaz, bom rapaz. Ou seja, só vou comprar o DVD depois de ler o livro, e no original. Sim, porque daqui pra frente esta será a minha desculpa para "Crime Castigo". Não li porque ainda não aprendi russo. Sabe como é, quero ler no original.

E assim vou tocando a vida. Peguei meu "Cidadão Kane" e fui embora. Fui embora com a consciência tranquila. Só peço uma gentileza aos que me encontram pelas ruas da cidade, não me falem de Raskólhnikov, por favor.



Frescor

Ontem eu ouvi alguém  falar em frescor da juventude. Usar esta expressão é tão velho quanto tomar biotônico Fontoura. E quando se fala em juventude, tudo é fácil. Mas quando o assunto é infância, ninguém mais lembra o que se passou neste remoto tempo. Acredito que de 20 em 20 anos o cérebro faz uma varredura de arquivos, e vai apagando as coisas. A culpa não é nossa, é do anti-vírus. O meu anti-vírus está com defeito. Lembro de coisas da infância como se fosse ontem. Mas se me perguntarem o que eu comi ontem, dificilmente vou lembrar.

A infância teve gosto de chiclete bola Ploc e chocolate surpresa. E já não sei mais se as histórias que lembro ocorreram, ou se eu com a minha fantástica imaginação de criança, as inventei para fazer da vida algo mais saboroso. Este é o segredo de Tostines.

Voltando ao frescor. Eu acho que cada idade tem o seu frescor. Se bem que eu desconfio que a adolescência não tem muito, mas tem. A Adolescência é a fase em que o ser humano vira ermitão de si mesmo. O mundo não existe. Todos estão errados. Todos querem foder com a gente.

E visto que cada idade tem o seu frescor. O meu maior frescor aconteceu na infância. Decidido. Se hoje me perguntassem qual idade eu queria ter, responderia sem titubear, 7 anos (no máximo). As joaninhas sentem falta de mim. Eu tinha uma comunidade de joaninhas. Uma comunidade secreta onde eu montava parques de diversões, estradas, cachoeiras, e tudo que minha imaginação permitia criar em miniatura para a colônia das joaninhas. Eu andava pela rua balançando a minha maria chiquinha com determinação de quem sabe das coisas. Eu olhava para as pessoas. Me indignava com o morador de rua, e achava que minha mãe deveria levá-los para a nossa casa. Qualquer cobertor entre duas cadeiras era motivo para uma grande aventura no acampamento. Eu fazia arte com comida, pintava com a convicção de que era artista, falava eu te amo como quem diz bom dia. Não tinha medo do lobo mau, e me sentia princesa. E com as princesas, nada acontece.

Pra mim, frescor não tem nada a ver com pele, beleza, sorrisos brancos e hálito puro (Kolynos)!
Frescor são ideias frescas, sem preconceitos, é saber ouvir, e não se achar dono do universo nem da verdade absoluta. Frescor tem a ver com ideias, definitivamente. Frescor tem a ver com manter a coluna ereta, mente quieta e coração tranquilo. E isso acontece em qualquer idade.