Já fazia alguns dias que não acontecia nada. Não sei bem
quantos, pois aqui da quarentena a gente perde a noção do tempo.
Aliás, que dia
é hoje mesmo? Ah, sim! O septuagésimo domingo do ano.
Mas hoje, hoje foi diferente. Hoje era de fato domingo, e
nos domingos a gente não espera muita coisa mesmo.
Ouço gritos e corro para janela. Não se cai uma pena neste condomínio
sem que eu saiba. Essa é a nova regra. Institui desde a quarentena. Cuido da vida
de todos os meus vizinhos com apreço e curiosidade.
Bem, não dava para ouvir muito bem do que se tratava. Sendo
assim, me senti na obrigação de abrir a porta para ouvir melhor. Perdi o pingo
de vergonha na cara que ainda me restava.
E basta um sair, para que todos possam sair de seus apartamentos.
Eu: - É a vizinha do
4 andar? Quem é?
Até a quarentena, eu não fazia muita ideia de quem morava
aqui.
Vizinha do 51: - Sim, ela é nova. Mudou recentemente.
Ouvimos bater de porta. Eu me viro para a vizinha do 51 e
com as mãos faço “shiu”.
“Devolve meu celular, minha senhora!”, dizia o
Jefferson – o zelador.
Ela gritava em alto e bom tom para que todos tivessem a oportunidade
de ouvir.
EU SOU UMA MULHER QUE MORA SOZINHA! NINGUÉM BATE NA MINHA
PORTA SEM INTERFORNAR, VOCÊ ESTÁ ME OUVINDO??????
Eu sei que alguns não tiveram a cara de pau de abrirem suas
portas, mas neste momento notei que estavam em seus respectivos olhos mágicos
de porta só observando.
Eu: – Precisamos ir
lá entender o que está acontecendo?
Vizinha do 51: - Mas por
que deveríamos fazer isso?
Eu: - Você não ouviu?
Ela sequestrou o celular o Jefferson. E só Deus sabe agora o que pode acontecer.
A mulher continuava gritando sobre morar sozinha, e ele ter
batido na porta sem avisar.
Eu: - Jefferson, não tente pegar seu celular!
Jefferson: - Mas Dona
Viviane, ela não pode fazer isso!
Eu: - Não, não pode. Isso é um sequestro de celular. Chame o
síndico.
Jefferson: - Acho que seu Roberto não está.
Vizinha do 51: - Eu vi ele saindo.
Eu: - Como assim? Seu Roberto é idoso. Deveria estar em
casa!
Vizinha do 42 sai de sua casa para entender a confusão, e
começa a gritar com a mulher que gritava. Começaram a se estranhar. Entendi que
era um desafeto já instituído.
Vizinha do 42 diz que o Jefferson não pode pegar o celular
porque é homem, mas ela é mulher e pode encher a cara da mulher que grita de
porrada.
Nesta hora o vizinho do 44 também sai de sua casa para
tentar segurar as mulheres que começaram a brigar.
Eu? Bem, eu só gritava: “Gente, isso é uma aglomeração!
Isso é uma aglomeração!”
Todo mundo pegou em todo mundo, e começou uma guerra campal
no quarto andar.
Por questões de saúde eu só dizia para chamar o síndico Seu
Roberto.
A gritaria generalizada fez com o que o vizinho policial do
primeiro andar subisse, e pedisse para ela entregar o celular, e para os demais
dispersarem ou ia todo mundo para a delegacia.
O policial resolveu o caso. Ao chegar no meu andar, os
vizinhos estavam todos do lado de fora aguardando atualizações.
Cada um de sua porta deu sua opinião sobre a briga, falamos de
séries, filmes, coronavírus, demos risadas, ganhei um bolo fresquinho da dona
Teresa, e entrei no meu apartamento com o sentimento de que a treta ainda vai
unir o mundo.