quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Caderno

Quando voltei a morar em São Paulo, depois de um ano na Bahia, eu tinha 7 anos de idade e havia acabado de ser alfabetizada em "baianês". Explico. O alfabeto baiano era diferente, oras. O "éfe" é "fê", o "ge" é "guê". Acho que não conto nenhuma novidade.
A novidade estava no fato de eu voltar para São Paulo em meados de 1988 falando baianês com bastante fluência. Sempre fui influenciável. Se fico uma semana em qualquer região do Brasil, volto como se fosse nativa. Me perdi. Deixa eu voltar a história.
Primeiro dia de aula. Sala de aula da Professora Jussara. Minha mãe não ajudava. Além de cortar meu cabelo ao estilo indiozinho, me colocou uma conguinha vermelha e um caderno brochura com indiozinhos desenhado.
As crianças tinham capas de cadernos legais. E não só isso, espirais. E o que eu fazia com um caderno brocgura? Pergunte à minha mãe, por favor.
E a aula começa. Tiro de minha mochila meu caderno brochura de indiozinho. Parecia que eu tirava uma jararaca de dentro da mochila, e logo em seguida a engolisse ao som de uma música circense. Sim, os olhares foram esses. Tímida que sempre fui, só acentuei as covinhas, tirei a franjinha juruna do olho, e continuei o ritual do "São Paulo, 04 de Outubro de 1988. Hoje o dia está nublado". Bem, não sei que dia foi isso, e se de fato estava nublado. Mas eu gosto de imaginar que sim.
- Crianças, quem conhece o alfabeto?
Tentando tirar a impressão de freakshow, achei bacana levantar a mãe e dizer o alfabeto. E lá foi ele, ao som de birimbaus, trios elétricos e toda uma baianidade nagô. Todas, sim, todas as crianças da sala caíram numa gargalhada sem fim. Não felizes com este constrangimento, ainda cantaram a musiquinha que destrói qualquer criança - Não sabe, não sabe, vai ter que aprender...
A professora tentou explicar as diferenças regionais, mas isso não funciona com crianças.
Não preciso dizer que meu apelido virou baianinha, e que ninguém da sala quis ser meu amigo logo de cara.
Hoje seria bullying. Naquela época minha mãe deu um tapinha nas costas, disse que meu caderno era lindo, que eu era especial, e que os meus amigos de escola eram bobocas, e que crianças não tem memória. Ela tinha razão, uma semana depois, ninguém lembrava mais do incidente. Sem traumas, sem choro nem vela, sem terapeutas, e só risadas quando lembro. Acho que desaprendemos a criar crianças.

Tchau, criança


Era o ano de 1993 quando eu deixei de ser criança
E como sabemos que deixamos de ser criança? Pra mim, eu deixei de ser criança a partir do momento em que os meninos deixaram de ser bobos e feios, e tornaram-se príncipes encantados em cavalos brancos para me salvarem da torre da bruxa má. É isso, é exatamente este o momento.
Márcio da rua de cima. ...
Sim, porque na minha época os meninos além de nome e sobrenome, eles tinham referências geográficas. O menino da rua de cima, o pessoal da vilinha, a gangue da rua da farmácia, os meninos da rua sem saída. Voltando ao Márcio da rua de cima.


Ele era o menino cobiçado da rua. O menino que as meninas achavam lindo. A bola da vez do bairro.

Aniversário da Talita, 1993. Ah, você deve estar se perguntando como eu tenho tanta certeza que foi 1993? Bem, em 1993 passava "Mulheres de Areia". Eu sempre torci pela Raquel, eis uma confissão. Desde sempre preferi as vilãs. Mas também sempre soube que as vilãs não ficavam com os mocinhos. Naquele dia da festa pedi para minha mãe me ajudar no penteado Rute.
Era um pedaço do cabelo preso, e outro solto. Eu tinha um cabelo bem comprido, estava me achando a própria Rute. Coloquei minha melhor roupa nova da Pakalolo, coloridíssima e infantil, e fui para a minha primeira festa baile.

Não sei como funciona na modernidade, mas na minha época (como eu adoro dizer "na minha época"), tinha um lance de dançar com a vassoura. E como desde 1993 tem muito mais mulher que homem, muitas vassouras no salão. E lá estava eu dançando "Bed of Roses" com a minha vassoura, quando Marcio da rua de cima se aproximou e tirou a vassoura de minha mão.
Isso foi acompanhado por todos os presentes, pois Marcio da rua de cima havia acabado de chegar na festa e me escolhido como primeira par de dança.
E é neste momento, este exato momento que você usa tudo que aprendeu com a She-Ha, Moranguinho, Princesa Sara do Cavalo de Fogo, Rute e Raquel da novela, tudo que você viu nos últimos 12 anos, e sabe que é o momento de encostar a sua cabeça no ombro do Marcio da rua de cima.

Bem, no dia seguinte você vira celebridade da rua, se acha linda, compra o vinil da novela e ouve "Bed of Roses" até riscar o LP, pede para sua mãe mudar suas roupas, seu penteado,doa suas Barbies, não quer mais presente de dia das crianças, muda seu jeito de falar, suspira durante horas, não come, não estuda, e tudo vira o menino da rua de cima. Pronto, acabou a infância. Fato. De agora em diante você sentirá isso muitas vezes, mas Marcio da rua de cima, só vai ter um mesmo. Afinal, infância não acontece todo dia.